Blues da mãe

Leoni Siqueira
3 min readNov 11, 2019

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  1. COPACABANA BLUES

O turista norte-americano mergulha seus olhos no verde-azul ondulante que se espraia para lá da arrebentação e transborda por trás da costura do horizonte, ponto de encontro com outro azul, o celeste leitoso da tarde tropical. Para ele, aqui é feito de festa. E de luz.

A quatro quarteirões dali minha mãe enfrenta as luzes ásperas e indelicadas do CTI Azul. Depois de passar a noite em claro, tremendo de frio numa poltrona coberta de plástico azul naval, é minha irmã quem assume agora a dúvida, ao lado dela no Leito 16. O que é ser um bom filho?

Livre dos barulhos dos monitores, da invasão febril de enfermeiras, enferrujo minha culpa na maresia da orla até ser ofuscado pelas flores eufóricas da camisa do turista, que, um tanto afoito, exibe seu iPhone 7 aos olhos famintos dos pivetes. Suas fotos capturam o paraíso azul dos flyers de agências de turismo.

Daqui a trinta minutos tenho que voltar para o hospital. Não roubaria seu celular, mas seus olhos azuis. Para eles, aqui é feito de festa. E de luz.

2. HEMINEGLIGÊNCIA

Minha mãe

ten

tando en

tender o te

xto à esqu

erda que o cér

ebro não reg

istra nem de

cifra mes

mo com a fa

ixa verm

elha com a aj

uda da peda

goga e a ago

nia enor

me de vê

-la as

sim

nessas horas a

tristeza que eu

trouxe de casa

dá uma trégua

trocada por outras

dores e aflições as

dela agora

minhas

mas basta um

segundo um

silêncio pra ela

ressurgir no

dorso de um

suspiro que

dói

3. LEITO 16 — CTI AZUL

A luz branca empoça no espelho imóvel do tempo e esfrega sua areia na fórmica dos móveis. Segundo o protocolo as mãos têm que ser lavadas por 30 segundos. Pingam os sons dos monitores. Pingam as gotas de soro e pingam umas tantas palavras grossas formando poças de sentido. Água turva das grutas do cérebro dela. AVC isquêmico. “Mãezinha do céu /eu não sei rezar / eu só sei dizer / quero te amar”. Repuxos na perna esquerda, sensação de queda, babinsky e sucedâneos. Abre a boquinha, mexe a perninha, abre a mãozinha. Pacientes adoecem diminutivos. Hospitais me lembram agências bancárias. A culpa arranha por dentro. Viu quem veio te visitar, mãe? “É a menina que calçou o sapato com rato dentro”. O lado esquerdo tenta atravessar o pântano. A lama grossa do mangue entope meu peito. Será que minhas irmãs também se perguntam o que é ser um bom filho? Níveis normais de cálcio, potássio e magnésio. “Engole, D.Neila. D. Neila! Engoliu? D.Neila… Engoliu?” Hospitais me lembram hotéis de beira de estrada. A culpa é uma cadeira dura. Eu me cubro de sombras e de frio. As mãos têm que estar sempre limpas. “Quero ir pra casa tomar um banho bem quentinho. Pede pra Cida fazer um mingau bem quentinho. Quero botar um pijama bem quentinho”. O olho direito, quando aberto, procura o lado direito. Se atira pro canto. O esquerdo não procura. Nada. Melhor, bóia nas poças de tempo. Os pensamentos são grupos de refugiados. Grades e obstáculos nas fronteiras. Muito frio nas mãos que devem ser lavadas por 30 segundos. A descortesia afiada da eficiência rasga o envelope de silêncio que embrulha o descanso. “D. Neila, tenho que 1) te examinar; 2) te trocar de decúbito; 3) checar seus sinais vitais; 4) dar o seu mingau, 5) colher sangue, 6, 7, 3, 8, 1, 2… 94 batimentos por minuto. “Ele não gostava de chuveiro, dizia que a água do chuveiro é dura, vovó, a água da banheira é mole.” O eletrodo perdeu contato. Desliga o alarme ali em cima. Ela hoje está muito prostrada. A noite enfileira roncos e longos períodos de apneia cortados por sustos. O monitor tagarela numa língua de números, mas eu sou surdo. “Fica na minha frente. Na minha frente que eu quero levantar. Meus filhos são muito desobedientes”. Hospitais me lembram supermercados. Eu não sei o que sinto, mas sinto muito.

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