Diário das fronteiras

Leoni Siqueira
3 min readMay 24, 2019

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Vou publicar hoje uma entrada do diário que venho escrevendo para me orientar, e às minhas orientadoras, no processo de pesquisa e escrita do meu livro Você não está aqui — um híbrido entre ensaio fragmentário e poesia, autoria e roubo descarado. Começou com uma proposta de falar sobre as diversas fronteiras/limites que inventamos — muros, prisões, conceitos, países, palavras, identidade –, mas isso acabou não tendo fronteiras. Tudo que eu leio ou vivo acaba tendo conexão com o projeto e, de alguma forma, acaba me modificando também. O terreno vai ficando cada vez mais pantanoso e interessante. Lendo as Ficções de Borges para a faculdade, me sinto identificado com suas narrativas circulares em que o narrador é narrado, o sonhador é sonhado, as realidades multiplicadas por espelhos, tudo transformado num labirinto infinito.

Você não está aqui já tem umas 40 páginas, o Diário, mais umas 30, mas sei que não estou nem na metade do processo, que já se desenrola há uns dois anos. Sei que algumas poucas pessoas vão se interessar pelo trabalho, pela inconsistência do rascunho, do inacabado, mas como eu adoraria ter acesso à obra em andamento de diversos artistas — com suas hesitações, rasuras, descaminhos –, vou puxar um pouco a cortina do ateliê e deixar vocês olharem enquanto trabalho.

"Rio, 22 de maio de 2019

É tanta fragmentação, tanta coisa para ler e para escrever, tanta falta de balizamentos claros, que o mais complicado é aprender a suportar a incerteza. Aliás, acho que o assunto desse livro, em algum momento, passou a ser esse: lidar com as incertezas, aprender a incoporá-las sem tanta ansiedade, porque elas são onipresentes. As certezas são fabricadas incessantemente para nosso alívio momentâneo. As teorias, os conceitos, os muros, as fronteiras nos ajudam a diminuir nossa angústia. Feito um bebê recém-nascido, que se sente melhor embrulhado em mantas bem apertadas ao redor do seu corpo. Sair do útero materno é atravessar a primeira fronteira e mergulhar na imensidão e no desamparo. O indivíduo é solitário.

Para Borges, no seu conto “Tlön, Uqbar, Orbis Tertius”, qualquer simetria com aparência de ordem basta para inflamar a humanidade. Essa é a razão do sucesso de Tlön, um mundo fictício, mas ordenado com rigor de enxadristas. Essa invenção atende muito mais às nossas buscas por segurança que a realidade, sempre imprevisível e incontrolável. É o mesmo apelo dos líderes autoritários: as mantas apertadas ao nosso redor que nos livram da angústia da liberdade e da eterna incerteza. A lógica capitalista e pentecostal da escravidão do trabalho ininterrupto, por mais aprisionante que seja — e talvez por isso –, é preferível à solidão do pensamento independente, fragmentado, nem sempre lógico.

Por outro lado, qual o mal em querer sentir-se protegido? Podemos culpar aqueles que, sem nem se darem conta, anseiam um retorno ao confinamento morno e seguro do útero, aqueles que não se conformaram nunca com a alteração dessa realidade? Revoltar-se contra a mudança, contra a realidade, é tão irracional quanto humano. Dialogando com Carlos Augusto Peixoto Junior (ver o dia 16 de maio), talvez a “intensa luminosidade do possível” seja insuportável para a maioria de nós, na maioria do tempo. Para muitos, perceber nos outros algum lampejo dessa luminosodade já é aterrador. Daí a incapacidade para a tolerância. A ‘desordem’ alheia é uma ameaça à nossa ordem fictícia. Ou todos vivemos em Tlön ou o planeta está em perigo.

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