Leoni Siqueira
8 min readSep 22, 2020

IDEIAS SIMPLES PARA UMA REFORMA POLÍTICA QUE INSTALE, FINALMENTE, A DEMOCRACIA NO PAÍS (sem precisar pegar em armas, espero)

Primeiro, olhe para essa foto e me responda se o poder não precisa mudar de cor, de gênero e de classe.

Democracia? O que é isso?

Se a Democracia é o governo do povo, isso que existe há alguns séculos por aí não merece esse nome. O governo da maioria dos países que se dizem democráticos sempre foi propriedade de um grupo minoritário, composto basicamente de homens brancos conservadores (mudar pra quê, né? ) e ricos. Sendo que esse último adjetivo é o mais significativo e importante. Seu poder econômico garante que as leis sejam feitas para proteger seus eternos privilégios.

Nos EUA, cuja celebrada constituição determinava que só homens proprietários de terras podiam votar e ser votados, até 1965, os negros não tinham direitos políticos plenos, e sua “democracia”, aquela que serve de exemplo para o mundo, conviveu por quase 100 anos com a escravidão e com leis racistas violentas que inspiraram Hitler na questão da superioridade da raça branca pura.

O Brasil não foi melhor. Só em 1985, depois da Ditadura Militar, o voto passou a ser universal, já que, antes disso, analfabetos não tinham esse direito.

O Congresso brasileiro, assim como todo o conjunto dos nossos representantes e dirigentes, sempre foi um enclave da classe dominante, mais especificamente dos homens brancos conservadores ricos. Esse grupo, que não corresponde nem a 10% do total da população — provavelmente esteja mais perto de 1%, ou de 0,1% –, é dono da maioria das vagas do Poder Legislativo. Isso implica na concentração absoluta do poder, com o direcionamento da maior parte das verbas públicas para esse grupo, já poderoso. Basta pensar em como foi fácil para os bancos receberem ajuda do governo na pandemia. E como foi, e está sendo, difícil para o povo mais necessitado. A Democracia em geral, e a nossa ainda mais, tem sido, historicamente, uma forma envernizada de manter privilégios centenários.

Não foi por acaso que, no começo da década passada, o mundo explodiu em manifestações contra a falta de representatividade popular no poder. Dos Indignados espanhóis à Primavera Árabe, a reclamação geral era de que o povo havia sido esquecido pelas elites políticas, sempre de mãos dadas com o poder econômico. Quer dizer, todo mundo berrando que a democracia não era nada democrática.

O que fazer (sem pegar em armas)

Uma ideia importante da nossa redemocratização — estranho chamar de redemocratização se nunca tivemos democracia — para reduzir esse desequilíbrio estrutural, virou realidade em 1997. Trata-se da cota de 30% para candidaturas femininas. Ou pelo menos é assim que a gente chama o artigo da Lei das Eleições que garante um mínimo de 30% e um máximo de 70% para candidatos de um gênero. Isso quer dizer, na prática, que temos o máximo de candidaturas masculinas e o mínimo de femininas. Apesar de ser uma política importante e justa, com o resultado das eleições de 2010, as congressistas mulheres ocupavam apenas 10% das cadeiras, percentual inferior ao da extremamente misógina Arábia Saudita. Nas últimas eleições, esse número subiu para 15%, mas ainda é muito distante da percentagem feminina na sociedade brasileira, que gira em torno dos 52%. Além disso, a eleição das mulheres esbarra na distribuição desigual das verbas partidárias de campanha, que continuam fluindo mais para os homens brancos. Segundo dados da pesquisa do Instituto Marielle Franco, este grupo minoritário, mas hegemônico, tem ao seu dispor quase 60% dos fundos dos partidos. Isso se a gente não levar em conta que muitas mulheres foram escolhidas simplesmente para cumprir a cota, e tiveram que “devolver” verbas para as campanhas masculinas — sendo o caso mais conhecido o que envolve o atual Ministro do Turismo. E há partidos fazendo pressão para que esse artigo da Lei Eleitoral seja revogado.

Além desse artigo sobre os gêneros, o TSE acabou de se pronunciar pela proporcionalidade dos recursos para candidaturas negras a partir das eleições de 2020. Nada mais justo, já que, nas últimas eleições, segundo a FGV, as candidaturas de mulheres e homens negros somadas, embora fossem 40% do total — número abaixo de sua percentagem na população brasileira –, só receberam 23% das verbas. Mas não há a garantia de uma cota mínima para candidatas e candidatos negros.

Um outro caminho possível

O que se percebe é que a estratégia para corrigir essa injustiça histórica é sempre uma tentativa de incluir mais grupos marginalizados nos processos de poder. Afinal o poder não era para ser do povo? Não devíamos ter representantes de todos os grupos sociais? Para chegarmos a esse objetivo teríamos que atender inúmeras outras demandas igualmente justas, como a dos indígenas, da população LGBTQIA+, a da população em situação de rua, a dos trabalhadores rurais sem terra.

Aí vem sempre a ironia desonesta dos privilegiados: e vai ter cota para anão, mendigo, canhoto, vesgo e gago? Essa pulverização das questões identitárias acaba colocando excluídos contra excluídos. Cada um desses grupos privilegiando suas causas particulares, mesmo que o problema seja comum a todos. Mas é o próprio deboche dos conservadores que nos dá o caminho para a solução. Todos esses grupos são sub-representados porque um único grupo minoritário é super-representado. Então, por que não tentarmos o caminho inverso?

Em vez de inúmeras cotas mínimas para os grupos que buscam representatividade, por que não instituirmos um teto para o grupo que abocanhou a fatia maior do poder? Isso uniria as vozes dessa imensa maioria, atualmente compartimentada em grupos falsamente concorrentes.

Ideias — até que enfim!

Levando essa proposta a sério, como eu a levo, teríamos o problema de imaginar como sermos efetivos nessa estratégia. Vamos a algumas possibilidades:

1) Poderíamos fazer do jeito mais óbvio: estabelecer um teto para homens brancos ricos na proporção de sua percentagem na sociedade brasileira. Isso traria dificuldades jurídicas. Como justificar tratamento diferente, prejudicial a um grupo de cidadãos, por gênero ou raça? Por mais que a ordem jurídica garanta tratamento desigual para os desiguais, as inúmeras ações de inconstitucionalidade trariam enormes dificuldades para a implantação desse modelo. Ainda mais sendo o grupo mais poderoso aquele que seria limitado pela lei. Não dá para esquecer como as cotas são sempre atacadas e estão sempre em risco. Quem não ficou chocado com o mimimi do “racismo reverso” no caso dos trainees negros do Magazine Luíza? Um problema adicional seria a definição de raça para fins eleitorais e o enquadramento dos candidatos nesses escaninhos. Se a regra fosse a autodeclaração, o que impediria que homens brancos se declarassem pardos ou negros? Criaríamos conselhos raciais para resolver esses problemas? Como não existe raça biológica, como definir critérios objetivos? Esses problemas têm acontecido nas Universidades, sem uma solução satisfatória que pacifique os ânimos.

2) Para resolver alguns desses problemas poderíamos tirar a raça dessa equação, já que homens negros ricos formam um grupo muito reduzido, e essas poucas perdas seriam largamente compensadas pela nova distribuição. Ficaríamos então com um teto para homens ricos. Mas isso ainda não resolveria o problema da ocupação do Congresso pela classe abastada, já que homens ricos poderiam usar suas mulheres ricas como suas representantes. Isso aconteceu com muitos políticos que foram afastados do poder pela Justiça. E muitas das mulheres ricas são também defensoras dos privilégios da sua classe, comandada pelos atuais proprietários da nossa política.

3) Já que nem raça nem gênero resolvem esse problema, poderíamos chegar a uma solução muito mais simples: teto de vagas para pessoas ricas. Apesar de parecer antidemocrático, seria uma forma de compensar os muitos anos em que apenas homens ricos (naturalmente brancos) tinham direitos políticos. E pode ser num nível bastante razoável, como os 10% mais ricos terem um teto de 10% das vagas. Faria uma diferença enorme, já que na Câmara dos Deputados atual quase metade dos parlamentares têm patrimônio acima de R$ 1 milhão e no Senado esse número sobe para 66%. Reduzidos ao teto, sobrariam, 40% das cadeiras da Câmara e 56% das do Senado para serem ocupadas por todos os outros grupos sub-representados atualmente.

É claro que qualquer das nossas opções precisa obrigatoriamente garantir o financiamento exclusivamente público de campanha, para evitar que os ricos patrocinem, com seus recursos, as candidaturas de prepostos ou laranjas.

Os resultados

Essa reorganização do poder, tornando-o muito mais popular, seria uma verdadeira revolução na decisão sobre as prioridades do Estado, na hierarquização das pautas públicas e na utilização dos recursos dos impostos dos brasileiros. Imagino que teríamos um outro projeto de país, eliminando de vez o maior problema da nossa democracia, o fato dela não ser democrática, de ser um instrumento de manutenção — e até de incremento — dos privilégios dos mais abastados.

Acredito que essa estratégia consiga reverter rapidamente o problema da representatividade no país.

Última ideia antes das armas

Aqui vai uma ideia que soluciona de vez o problema, mas é tão simples e definitiva que talvez crie uma reação armada por parte dos poderosos. Lá vais: se em duas eleições os padrões de representatividade não apresentassem melhora significativa com as ideias acima, podemos partir para o que é a minha solução preferida, mas que apresenta muita resistência por parte dos que acreditam no mito liberal de que o voto é garantia de democracia, mesmo diante de todas as evidências em contrário:

4) Sorteio. Ficaria abolido o voto para o Legislativo. Todo cidadão poderia se candidatar. Como não haveria necessidade de campanha, ficaria abolido até o financiamento público para tal — imagine a enorme economia para os cofres públicos! Será que os liberais têm alguma crítica a esse corte nos gastos do governo? Através desse processo, a representatividade seria infinitamente maior que a que conseguimos até agora. Mulheres teriam por volta de 50% das cadeiras, assim como negros e negras, e homens (48,2% da população) brancos (45,5%) ricos (10%? 1%) ficariam na sua estreita faixa de merecimento demográfico, algo por volta dos 2%, no máximo, sem que precisássemos cair na armadilha de definir gênero, cor ou padrão de riqueza. Teríamos o acaso como o grande agente democratizante. Seria também um fator de união das pautas identitárias, que hoje se encontram dissociadas, às vezes até em campos opostos, dependendo do assunto tratado. Teríamos ainda a grande vantagem de evitar as carreiras quase vitalícias e hereditárias de deputados fisiológicos. Seria o fim do patrimonialismo herdado da nossa história colonial. Finalmente o fim da mamata.

Espero ter trazido munição para o pensamento sobre o aperfeiçoamento da nossa democracia tão pouco democrática, na verdade uma oligarquia racista e sexista, com gravíssimos problemas de desigualdade de renda, de oportunidades e de direitos. Nesse momento de ascensão do populismo de direita, oferecer ao povo, como contraponto, a defesa da Democracia, as we know it, esse mesmo arremedo de democracia que nunca chegou às periferias, é um verdadeiro escárnio. Em vez de oferecer o voto em representantes que nunca representaram (nem representarão) a população mais vulnerável, muito mais atraente é a participação direta do povo no poder. E o povo no poder é uma ideia que sempre deu medo no sistema. Que bom.

PS: Às armas!

Como não dá para mexer na legislação eleitoral para o pleito municipal desse ano, o que podemos e temos que fazer é simples: mudar, pelo voto, a cara do poder, que precisa ter outra cor, outro gênero e outra classe. Convoco todo mundo a votar em mulheres negras das periferias. Imaginem o impacto que isso traria para as pautas do transporte público, das creches, da educação básica, da defesa do SUS, do direito à moradia, do saneamento, da proteção aos mais vulneráveis.

Vamos criar essa campanha? Alguém sugere umas três hashtags?