Leoni Siqueira
8 min readJan 22, 2019

LER MENOS, LER DEVAGAR, RELER ou DIAS ÚTEIS

Sempre li muito, mas isso não faz de mim um erudito ou alguém a quem se possa consultar, como um dicionário ou uma enciclopédia. Até porque a memória é um arquivo falho, cheio de buracos e de lacunas mal preenchidas. E a minha deve ser abaixo da média. No maravilhoso livro de Pierre Bayard, Como falar dos livros que não lemos (Objetiva, 2007), o autor chega a afirmar que nunca se lê um livro. Ele divide as obras em 4 categorias: LD – livro desconhecido; LF – livro folheado; LO – livro de que ouviu falar; e LE – livro esquecido. Essa última inclui todos os que já lemos, e que, inexoravelmente, vamos esquecer. Sou obrigado a concordar com ele. Um dia percebi que muito pouco da biblioteca que li havia ficado na memória. Ao fim era como se nem tivesse lido. Qual o nome do personagem principal de O jogador de Dostoiévski? Nenhuma recordação. Qual era mesmo a história de “Os laços de família” da Clarice Lispector? Restam impressões ou sensações ligadas à leitura, quando muito. Lembro-me de ter lido sobre ideogramas chineses num livro do Alberto de Campos. Ou seria de seu irmão, Humberto de Campos? Ou dos dois? Muitos livros eu cheguei a esquecer que li. Esses nem posso citar.

Minha filha Carolina, escritora e leitora habitual, diante das minhas reclamações, me deu um caderno encapado em couro, criado especialmente para anotar livros lidos, incluindo impressões, editora, ano de lançamento, data da leitura, língua original, prêmios recebidos etc. Foi um ganho enorme. Fiquei feliz em ter algo mais pessoal que as consultas ao Google para me lembrar dessas obras. Com essa ferramenta, passei a ler ainda mais. Em 2016 cataloguei 36 livros. E fiquei tolamente orgulhoso. A minha média tem sido apenas um pouco abaixo disso. Mas um desses livros de 2016 teve uma “catalogação” preguiçosa e, quando quis falar sobre ele para um amigo, tive que recorrer à internet.

Se não ficam inteiramente armazenados na memória, se às vezes nem sobra nada dessas leituras, então, o que há de especial em ler muito?

Para mim, em primeiro lugar, há o prazer. A construção verbal inusitada, a imagem surpreendente, a informação que acende algumas luzes na escuridão da minha ignorância, a narrativa surpreendente, as férias de mim mesmo, o desafio do novo, a revelação do comportamento humano por outro ponto de vista, tudo isso me proporciona uma gama enorme de emoções positivas.

Depois disso vem o autoconhecimento. Toda narrativa é uma escolha pessoal, lida por mim, a partir das minhas experiências. Minhas reações, as conexões que faço com os fatos da minha vida, me fazem prestar atenção ao que me importa, ao que me diverte, ao que me repugna. Sou capaz de mudar de opinião e de atitudes a partir de um livro. Que nem precisa ser tão bom.

Em terceiro, diria que são as viagens que a leitura proporciona. Um texto remete a outro, que conecta com uma informação de outra área e, de repente, a página é apenas um browser em que se abrem “abas mentais”. O significado de um texto – se é que existe isso – é infinitamente menos importante que as possibilidades de sinapses que provoca. Por isso, tenho convicção de que um livro não é uma obra acabada, estável. É muito mais a estação de onde partem, sem destino prévio, os trens do nosso pensamento, rumo a uma infinidade de destinos possíveis, que dependem muito da nossa capacidade de condução. Quando estou interessado em determinados assuntos, presto mais atenção em partes da obra que tenham a ver com estes do que prestaria em outro momento em que fossem outras minhas obsessões. Sim, vivo trocando de obsessões. Obsessivo assumido. Minhas contribuições são fundamentais para os livros que leio. Quanto mais capaz eu for como leitor, melhor para as obras. Por exemplo, os romances do Machado de Assis melhoraram muito desde a minha adolescência – especialmente depois de ter tido um semestre na faculdade dedicado à sua obra sob a orientação do professor, historiador e escritor Fred Coelho.

Todo esse longo preâmbulo nasceu apenas para falar do meu encanto com dias úteis – assim mesmo, todo em minúsculas, como o baião de 2, minha parceria poética com o Mauro Santa Cecília – da escritora portuguesa Patrícia Portela. Patrícia me foi indicada por minha professora, mentora e amiga literária, Cláudia Chigres. Pedi dicas de autores contemporâneos portugueses para aproveitar minha viagem familiar a Lisboa e ao Porto. Comprei poucos títulos e comecei por esse, o menorzinho. O início do livro é como bater de carro. Leva-se um tempo para entender o que está acontecendo, para onde você está sendo levado. Aos poucos as coisas começam a fazer algum sentido. Nem tanto assim, aviso. Mas é tudo tão novo e perturbador que é impossível não chegar ao fim. (Aqui falo por mim. Sei que muita gente pode achar muito chato ter que se esforçar tanto para adentrar esse universo estranho e desconfortável. Mas acredito que quem chegou até aqui nesse texto tem uma boa chance de concordar comigo.) Alguns capítulos são praticamente poemas em prosa. Outros são histórias em que esperamos que os finais nos tragam uma pista do que estivemos lendo. É um livro pequeno, de 111 páginas, que se atravessa como se atravessaria um deserto: com esforço, risco e maravilhamento. Talvez por isso tenha sido lido com sede, com pressa, querendo chegar logo em algum oásis conhecido, ou melhor, em casa. Nessa velocidade muitas das “abas mentais”, mencionadas anteriormente, são apenas abertas, mas não exploradas. Como se estivesse vendo tudo da janela de um carro em movimento e as ideias passassem sem que pudesse ter tempo de apreciar, de reconhecer ou mesmo de focar direito. Ficam muitas perguntas sem respostas. Isso já bastaria para recomendar a leitura de dias úteis. Quantos livros nos deixam cheios de perguntas e curiosidades? Mas as respostas que podemos nos dar, as descobertas que podem brotar no caminho, me fizeram recorrer ao meu mais novo procedimento de leitura: a releitura.

Venho experimentando um prazer cada vez maior em reler. Até porque, para mim, não é possível ler de novo o mesmo livro. “Novo” e “mesmo” se contradizem. Não há nada de repetitivo em voltar à primeira página e percorrer o mesmo trajeto de palavras até seu final. É sempre outra obra que abrimos. Na segunda leitura de dias úteis, sem a pressa, sem a vertigem, vieram as pequenas epifanias e as grandes viagens. Não as imaginadas pela autora – que não conheço e, portanto, não poderia adivinhar suas intenções secretas –, mas as que posso ter. É nessa outra leitura que rabisco e marco o livro. Aliás, ela mesma (a obra? a narradora?) sugere que eu o faça no segundo prólogo, “didascália”: “Reescreve-me onde achares necessário, acrescenta-me onde me achares incompleta, marca-me no canto inferior as tuas paragens, risca-me a caneta nas impressões”. E foi assim que descobri que muitas de suas frases têm muito a ver com uma obra experimental que venho escrevendo (sem prazo de finalização, sem noção do seu resultado final, ainda sem título) sobre fronteiras de todos os tipos. Patrícia Portela se transformou em mais uma fonte de inspiração para esse meu texto disforme, porque, como ele, também não respeita fronteiras de gênero – os resenhistas não se decidem quanto à classificação de seu livro, encontrando elementos de conto, romance, teatro e poesia nas suas narrativas que nem sempre narram –, de formato, de estilo, de assuntos. E ainda tem um capítulo, “Quinta-feira”, que trata (trata?) da nossa condição humana de refugiados, de estrangeiros na nossa própria vida. Os países, como os costumes, são arbitrários e mutáveis, e em tempos de globalização perderam todo o sentido:

Uma quantidade de camiões chegam e partem, levando muitos pedaços de terra de muitos países para muitos outros. Fico ali parada enquanto a terra, sozinha, se move sem mim. Sem ninguém. […] Um dia o mundo estará tão trocado que nos sentiremos em casa em qualquer parte.

Ou totalmente inadequados, seja em casa, seja do outro lado do mundo, já que

A identidade também é um país. Temporário, mas um país. Não é um corpo, não é terra, não é mar, e pode até não ser a nossa, mas é um país.

Na “Sexta-feira”, o assunto prossegue, a obra (a narradora?) afirma ser um “manifesto disfarçado de conto de fadas”, e volta ao tema das fronteiras (ou do desrespeito a elas):

Nunca trago as fronteiras no mesmo lugar, não faço ginástica, não toco piano, nem sequer falo por toda a parte francês, mas mudo regularmente de estação, e de hora e de dia, e os meus amantes não gostam disso.

Esse é o livro que descobri na segunda leitura. E ainda tive o prazer de reler o magistral “Quarta-feira”, prosa poética de tirar o fôlego sobre separação (será?). Tentei selecionar um trecho para mostrar, mas é tanta coisa linda e violenta e potente, que preferi deixar a curiosidade arrastar vocês para o texto. Para instigar, aqui vai apenas a epígrafe de Adélia Prado: “Não quero faca, nem queijo. Quero a fome”. Aliás, os brasileiros são responsáveis pela maioria das epígrafes do livro: Drummond, Érico Veríssimo, Adélia, João Gilberto Noel e Machado de Assis.

Quase no fim, “porque hoje é sábado”, sobre a morte de um amigo, traz a frase que é citada como resenha do livro em muitos sítios portugueses: “procuramos o lugar exato de onde vem a razão ignorando que a lógica nunca evitará a dor. Fazemos sentido porque podemos cair, não porque poderemos voar.” dias úteis convida ao vôo, e também ao mergulho, já que no céu , como no mar, não há fronteiras. Eu aceitei o convite e adorei os resultados. Aliás, aceitei duas vezes, como sugerido em “didascália”: “Não te despeças. Promete só que regressas.”

Voltando ao título desse texto, acho que venho lendo menos e melhor. Se um livro me interessa, ganha meu tempo. Marco, risco, reescrevo (como dias úteis pede aos seus leitores), me inscrevo nas suas páginas. No fim do ano passado li e reli Vidas Secas do Graciliano Ramos, que já estava na minha lista de livros esquecidos (LE, para Pierre Bayard). Aos poucos fui descobrindo, dentro do livro, outro livro maravilhoso sobre a linguagem como mecanismo de poder dos proprietários de terra em relação aos sertanejos. Dentro da linguagem seca de Graciliano, uma ainda mais árida, quase composta só de grunhidos, inútil e subserviente dos “cabras”. Acabei escrevendo um artigo sobre o assunto. Me senti um pouco parceiro de Graciliano Ramos no livro que está na minha estante. Quanto aos outros, não tenho nenhuma responsabilidade. Devem até falar de outros assuntos. Sei que ainda há inúmeros outros livros a serem descobertos dentro de cada um que leio. Especialmente se eu os ler mais devagar, mais vezes e melhor. Por incrível que pareça, depois de anos de muitas leituras aceleradas, me dei conta de que ler muito, ler rápido, é uma forma preguiçosa de se relacionar com os livros. É quase não ler.

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