Minha parceria com Moraes Moreira ou Uma língua que desaparece
Para mim, Moraes Moreira está entre os maiores da nossa música. E os Novos Baianos ocupa, no meu panteão, o posto da maior banda de rock do Brasil. Digo “de rock”, porque em geral as bandas são “de rock”, e eles faziam parte do melhor rock brasileiro, daquele que não dava bola para as fronteiras de gênero e misturava tudo que aparecia pela frente. Antropófagos musicais, como os Secos e Molhados, Melodia, Gal, Macalé, Gil, Tom Zé, Caetano. Poderia dizer, sem pestanejar, que é a maior banda do Brasil, independente de estilo e de época, e uma das melhores do mundo. Os Novos Baianos fizeram de tudo um muito e foram uma luz alternativa, uma fonte de alegria, nos tempos sombrios e tristes da Ditadura. Eu assisti a infinitos shows deles. Era uma celebração. Havia muitas bandas dentro de uma banda só. Muitos cantores fabulosos. Nunca houve nada parecido. Depois, em carreira solo, Moraes revolucionou o carnaval brasileiro e deixou um repertório inacreditável.
Toda essa introdução laudatória (e olha que eu me contive para não escrever muito mais) é só para dizer que, infelizmente, não tenho uma parceria com Moraes. E olha que foi por muito pouco. A gente chegou a combinar um encontro musical — que nunca aconteceu. Foi no lançamento de Poeta não tem idade, seu livro de poemas em forma de cordel, na Livraria Argumento no Leblon. Isso faz alguns anos. Foi em novembro de 2016, bem antes do fim do mundo. Os Novos Baianos estavam se preparando para voltar. Por conta disso, a gente ia ter que esperar um pouco. Antonio, meu filho, músico e muito fã do Moraes, vivia me cobrando essa parceria. Internamente eu me cobrava ainda muito mais, mas não tomava nunca a iniciativa.
Hoje, apesar da dor e da frustração, percebo que faz todo o sentido não ter rolado. Nunca entendi qual colaboração eu teria a dar a uma canção de Moraes Moreira. Para mim, ele falava numa outra língua que, embora eu adorasse e compreendesse, não sabia falar. As harmonias e os formatos das suas canções são tão especiais e livres que minha interferência só as tornaria mais convencionais. Sentia a mesma coisa em relação às letras. Sua espontaneidade, que beira os improvisos dos repentistas — ainda mais depois que mergulhou no cordel –, ia ficar travada na minha introspecção e na minha rigidez poética.
Acho que o que eu queria realmente, e não percebi na época, era sentar a seu lado enquanto ele estivesse compondo, como uma forma de aprender seu idioma, seus caminhos harmônicos e melódicos. Eu queria ser seu amigo. Mas como ser fã e amigo ao mesmo tempo? E como ser amigo de alguém que fala em outra língua?
Nossos caminhos já haviam se cruzado no século passado, numa oficina de poesia que mais parece mitologia que algo acontecido entre os mortais. Os professores eram Waly Salomão e Antonio Cícero. Toda semana tinha algum convidado para conversar com a turma. Entre eles estiveram Caetano Veloso, Jorge Mautner, Galvão — parceiro constante de Moraes –, Pedro Bial (!). E entre os meus colegas estavam os já famosos Marina Lima e Moraes Moreira. Eu tinha dezoito anos e uma timidez do tamanho do meu ego. Um ano antes eu havia andando seis quilômetros a pé para ir de Arraial da Ajuda até Trancoso só para assistir a um show do meu futuro colega. O Brock só aconteceria uns três anos depois. Naquela época, ser parceiro de Moraes era algo inconcebível. Éramos de mundos separados. Trocamos pouquíssimas palavras. Será que já era um problema de idioma?
Mas eu queria muito ter sido parceiro dele. Desejei ter pelo menos alguns rascunhos de letra e de melodia para não chegar desprevenido às margens dessa cachoeira de criatividade. Não queria fazer feio diante do ídolo. Nunca consegui nenhum rabisco que me ajudasse a por os pés nessas águas. Fui adiando até que hoje nossa parceria virou história não vivida, um relato no livro dos sonhos.
A morte de Moraes é arrasadora para mim e para o Brasil. Em alguns países da África Ocidental, os griots, sábios mais velhos, são os responsáveis pela transmissão oral do conhecimento de suas comunidades. Quando morre um griot, diz-se que morre uma biblioteca. Para mim, é como se uma língua tenha acabado de desaparecer, e eu perdi a chance de aprender com o único professor que a conhecia. Ficou só o plano não realizado na dedicatória do seu livro.