O FILTRO DO TEMPO ou AS CARTAS QUE EU NÃO MANDO

Leoni Siqueira
3 min readMar 23, 2019

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É claro que as mensagens de WhatsApp, os SMS e até os e-mail são muito mais eficientes para a comunicação do que as cartas. Me lembro de me corresponder com amigos/namoradas/parentes que estavam viajando e de toda a agonia que a espera da resposta gerava. Às vezes algo de importante acontecia um dia depois da carta enviada e aquela comunicação se tornava obsoleta antes de atingir o destino. Isso quando uma delas não se extraviava, aumentando muito a regularização da conversa, dando margem a um milhão de indagações: será que meu amigo/namorada/parente se zangou comigo? Às vezes era só um endereço errado que gerava toda a angústia. Hoje, se alguém leva 15 minutos para visualizar/responder uma mensagem, tem gente que já fica ansiosa. Com as cartas, você dizia “oi”, o receptor “visualizava” uma semana ou dez dias depois e você seria respondido em 15 ou 20 dias.

É verdade que existia o telefone para emergências. Mas as ligações internacionais eram caras e você tinha que dar sorte da pessoa estar perto do aparelho na hora da sua ligação. Que dádiva vivermos num tempo em que temos acesso quase imediato a todo mundo que nos importa.

Mas as cartas tinham uma vantagem, que era o tempo como filtro. O ritual da correspondência inibia as mensagens intempestivas, que nos envergonham para sempre, os áudios alcoolizados no WhatsApp etc. Escrever uma carta era mais que jogar palavras no mundo. Com todo o esforço que envolvia, normalmente escrevíamos quando tínhamos acumulado assunto ou saudade para compartilhar. Depois de escrever, havia a releitura, a rescrita, a re-rescrita etc. Depois, envelopar, selar, endereçar, nos dava tempo para pensar se devíamos ou não mandar a carta. Se essa tivesse sido escrita à noite, tínhamos que esperar pelo dia seguinte para ir ao Correio – embora uma minoria de pessoas tivesse selos em casa.

Tempo, essa é a diferença. Tempo para pensar, meditar, voltar atrás. O tempo como amortecedor social. O Herbert dizia que, quando aparecia uma crítica ruim de algum trabalho dos Paralamas no jornal, ele escrevia uma longa carta arrasando o “adversário” com argumentos, ironia e ofensas, e depois rasgava ou “mandava para Timbuktu”. A raiva passava e a vida seguia de uma forma mais serena. Hoje o tempo de decantar o ódio, o álcool, a leitura superficial se acabou. Reagimos antes de ler todo um post de 140 caracteres. Duas palavras que nos desagradem e já estamos com a faca verbal na garganta do “inimigo”. Não dizemos mais o que pensamos, dizemos o que não pensamos. E vêm o arrependimento, a polarização, a agressividade, a crítica gratuita, as amizades desfeitas, o rancor.

Um viva a todas as cartas não enviadas, a todas as brigas evitadas, a toda gentileza restaurada. Um viva ao tempo como conselheiro.

E um viva maior à minha mulher, Luciana, que escrevia cartas não enviadas para a melhor amiga, e que me acordou um dia com a letra quase completa dessa canção, responsável pelo Leoni Day na internet e por essa possibilidade de reflexão.

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