RESPEITEM O SILÊNCIO DA RÁFIA
Para Neila (1934–2019)
A ráfia olha pela janela do quarto e se cala. Não tem como lidar com a dor de não ver mais sua amiga ali. Ontem retiraram a cama de hospital, de onde se falavam nos últimos tempos, cheias de histórias mudas. Ela não conseguiu protestar.
A ráfia enfia os pés mais fundo na terra e não diz palavra. Está paralisada, em choque. Não mexe uma folha. A voz lhe falha. Não sabe como lidar com essa ausência ofuscante, com essa falta gritante, com esse silêncio pegajoso, onipresente.
Eu também não tenho o que dizer à ráfia que compartilhou tanta história de dor, superação, cuidado, medo, carinho, confusão, vida e — ainda não tive coragem de dizer, mas sei que ela o intui em sua imobilidade triste — morte.
Quando eu souber o que dizer, vou contar para ela como tudo aconteceu, o que eu senti, do bolo no estômago, do amor — nunca se esqueça, nenhum segundo, que eu tenho o amor maior do mundo — , dos muitos choros, da tristeza infinita, do chão que faltou quando a notícia veio, dos abraços familiares, do alívio, da culpa do alívio, de ter desejado o fim — que ela fingia não notar que já havia chegado depois da falência dos rins, da septicemia, do entupimento das vias biliares, produzindo números estáveis, só para nos tranquilizar, no monitor do CTI.
Quando eu souber o que dizer.
Por enquanto, mudo como a planta, testemunha fiel desse processo tão natural, tão humano, tão devastador como a decadência do corpo e a morte, agradecido, vou regar diariamente essa tristeza vegetal, numa conversa de silêncios e águas.
Por enquanto, por favor, respeitem o silêncio da ráfia.
Adeus, minha mãe.