QUEM VOCÊ PENSA QUE EU SOU? — INVENTANDO LEONI
Ser quem se é num mundo tão narcísico é uma afronta pessoal. É quase uma ofensa não corresponder às expectativas dos outros, não pensar como se espera. É uma declaração de guerra contra todas as outras individualidades. Como você ousa pensar o que você pensa? Como se atreve a não ser como eu? Quem você pensa que é? Bem, para essa última pergunta ainda não tenho resposta. Aliás, essa é uma forma de ataque comum nas redes sociais. Quem é Leoni? Como se o fato de eu ser uma figura pública significasse que todas as pessoas no mundo obrigatoriamente deveriam me conhecer, e que ser um “ninguém” para meu interlocutor seria a maior ofensa possível que ele poderia me fazer. Meu ego frágil deveria desmoronar diante do anonimato, mesmo que parcial. Cheguei a escrever um poema de bate-pronto, que postei no Instagram — me lembro de ter escrito na van, entre duas cidades num fim de semana de shows –, para responder a uma fã/inimiga, que, no intuito de atacar alguma ideia minha da qual ela discordava, veio com essa pergunta.
QUEM É ESSE TAL DE LEONI
para Olga Ferreira
Ainda não
sei. Que bom
saber que
você se im
porta.
Espero que, um
minuto antes
da minha morte,
possa
bater na sua
porta
portando
alguma
res
posta.
Hoje penso que nem isso me interessaria. De que adianta saber quem eu sou — partindo-se do pressuposto platônico de que existe uma essência — faltando um minuto para eu que deixe de ser o o que acabei de descobrir? De que me valeria essa informação? Talvez valesse apenas para a pessoa que me fez a pergunta, para que ela deixasse de ter que suportar a incerteza, a dúvida. Para que Olga pudesse me encaixar em alguma de suas categorias estreitas e definir sua posição em relação a mim.
Uma das preocupações que detectei em pessoas que têm esse tipo de atitude nas conversas é que, sendo conhecido, eu possa convencer mais gente a pensar como eu, o que seria intolerável, porque não é como elas pensam. É um ataque ainda maior ao seu ego, às suas certezas, do que se eu fosse um desconhecido. Daí a necessidade de equalizar essa disputa. Quem é esse tal de Leoni? é um ataque defensivo.
A mim, esse tipo de “ofensa” importa pouquíssimo. Primeiro, porque a fama é um bem que não me comove. E que pode ser uma maldição. Adoro passar despercebido nas minhas atividades diárias. Vou à PUC de ônibus, faço compras no supermercado, circulo a pé pelo Rio. Muito raramente alguém me reconhece e me cumprimenta. Rarissimamente alguém me para para conversar ou tirar um selfie. Não quero imaginar o inferno que seja não poder estar no meio das pessoas sem chamar muita atenção, ter que tirar dezenas de fotos, cumprimentar e até fugir de multidões o tempo todo. Como deve ser a vida do Roberto Carlos ou da Anitta? Segundo, porque realmente não acho que um dia eu vá saber quem eu sou. Mudei tanto e tantas vezes na vida que não acredito que tenha algo em mim que me defina. Nem minha carreira, que é a mesma há 38 anos. Atualmente, fazendo faculdade de Letras, me sinto começando algo novo que ainda nem sei do que se trata. Se tenho aprendido alguma coisa é a convivência com a incerteza, com a dúvida, com o vazio. Olga Ferreira deveria voltar à Universidade só para se liberar da minha resposta. Tenho questionado até o meu ofício, desejado novos desafios, ficado em silêncio criativo. Fico à espreita do surgimento do desejo, da paixão. Não é fácil. Em muitos momentos a ansiedade ataca forte, me sinto irresponsável de não estar pensando em compor, gravar, lançar, divulgar, como sempre fiz, e como sempre me imaginei fazendo. Para sempre satisfeito. Feito prisão perpétua. Mas, felizmente, não é proibido sofrer.
Afinal, quem sabe quem eu sou? Minha mulher? Meus filhos? Meus amigos? Minha terapeuta? Eu? Os fãs? Só o Facebook e o Google acham que sabem. “Uma pesquisa publicada pelo “Proceedings of the National Academy of Sciences”, afirmou que o Facebook pode conhecer mais informações sobre você que a sua própria família e amigos. “[…] Em média, a cada 10 likes, era possível saber mais da pessoa do que um colega de trabalho, a cada 70 likes, melhor do que um amigo ou colega de quarto, e a cada 150 likes, era mais eficiente até do que um parente. Já para conseguir saber mais de alguém do que seu marido ou sua esposa, a coisa ficou mais difícil: foi preciso 300 curtidas analisadas para obter o mesmo índice”. [1] Algumas matérias que li na rede me garantem que, atualmente, com o aprimoramento dos algoritmos, o Facebook pode saber muito mais sobre mim do que eu mesmo. Minha subjetividade estaria inteiramente quantificada e disponível, basta que alguém saiba como analisar os dados da minha vida virtual. Só que o que ele sabe são o meu presente e o meu passado recente, não sabe o que eu posso vir a ser, porque isso vai depender do acaso — minha divindade favorita –, das conexões que eu puder fazer com o que mundo me apresentar, com as epifanias que vierem me arrebatar, com a dança dos afetos ao meu redor — e dentro de mim –, com a minha coragem e meu medo de me jogar no vazio.
E o acaso já começa a fazer das suas. Uma das coisas mais estimulantes de estar de volta à Universidade é a chance de poder ser bombardeado por ideias que nunca chegariam a mim se estivesse apenas seguindo a vida de músico popular. Essas últimas semanas foram especialmente provocativas por conta de algumas mesas de discussão. A primeira era sobre escritas performáticas e a segunda sobre arquivos artísticos. O que, à primeira vista, parece muito especializado e árido, disparou mil conexões que ainda estão germinando ideias para algo que pode vir a ser um espetáculo novo, bastante diferente de um show convencional. Só sei que não sei como será, e isso é o mais gratificante: pensar que depois de quase 40 anos fazendo música, existe algo que me desafia, sobre o qual não tenho controle e, que pode não dar em nada, mas já vai ter valido por me deixar nesse estado de invenção.
[1] https://www.techtudo.com.br/noticias/noticia/2015/01/facebook-conhece-voce-melhor-que-seus-amigos-e-familia-diz-pesquisa.html