RÉQUIEM PARA AYLAN — E ÓSCAR E VALÉRIA E…
A foto de Óscar e Valéria, pai e filha mortos, levados pela correnteza do Rio Grande, tentando chegar aos EUA, é infinitamente triste e revoltante. No liberalismo dominante, mercadorias e capital podem circular livremente sem fronteiras, já as pessoas pobres não têm direito à liberdade de movimento. Ao contrário, são sempre exiladas, mesmo em seus países.
A nossa época tem fetiche por muros, muralhas, celas, grades, mas até a Primeira Guerra Mundial, nem existiam passaportes como conhecemos hoje. Num mundo pós-utópico a liberdade já não é um sonho possível. Aliás, os sonhos já não têm mais a menor importância. As portas se fecharam para os seres humanos. Aves cruzam os céus, peixes, os mares, indiferentes às nossas fronteiras. Nuvens, rios, ventos correm o planeta e nem imaginam que só nós somos rejeitados, ou recebidos com raiva pelos nossos iguais, quando precisamos sair de onde estamos. Somos infinitamente desumanos.
A foto de hoje é irmã gêmea daquela de Aylan, em Bodrum.
O poema abaixo foi escrito sob o impacto da morte do menino numa praia do Mediterrâneo, mas tem o mesmo DNA da nossa violência e indiferença, da postura excludente que os privilegiados têm em relação aos que mais necessitam de ajuda, da política para migrantes que vem jogando corpos nas margens dos países que deveriam, de forma minimamente humana, estar de braços abertos aos que sofrem.
O mundo deveria estar de luto.
Eu estou
RÉQUIEM PARA AYLAN
A sala enchendo de luz
Café fumando na xícara
Eu me encharcando de mundo
Da ressaca das notícias
Nuvens da primeira página
Chegaram escuras e tristes
Transportando tempestades
Eu me engasgando de pão
De margarina e de lágrimas
Tinha um garoto no chão
Na foto – que eu nem olhava –
Na praia – nas minhas mãos.
Tinha fugido de casa
Das armas, de um outro mundo
Abandonado o passado
E uma incerteza sem fundo
Por um presente sem planos
Pra se afogar sem futuro
No fundo do Mediterrâneo
Pra vir morrer noutra guerra
Depois de expulso da infância
Pra ser a grande manchete:
“Nós já não somos humanos”
Que espécie de espécie é essa
De monstros que nos tornamos?
Temos desprezo pros pobres
E cerca pros imigrantes
Eles que passem ao redor
Do ódio das nossas certezas
Cegas àqueles que sofrem
Aylan morreu nessa mesa
Entre as louças do café
E a tristeza que ele deixa
Não era ninguém, mas era
Todos os filhos do mundo
Cuspidos pela maré
Sobre as pedras de Bodrum
Sobre os destroços de nós
Náufragos dos tempos turvos
Em que hoje morremos sós