RÉQUIEM PARA AYLAN — E ÓSCAR E VALÉRIA E…

Leoni Siqueira
2 min readJun 27, 2019

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A foto de Óscar e Valéria, pai e filha mortos, levados pela correnteza do Rio Grande, tentando chegar aos EUA, é infinitamente triste e revoltante. No liberalismo dominante, mercadorias e capital podem circular livremente sem fronteiras, já as pessoas pobres não têm direito à liberdade de movimento. Ao contrário, são sempre exiladas, mesmo em seus países.

A nossa época tem fetiche por muros, muralhas, celas, grades, mas até a Primeira Guerra Mundial, nem existiam passaportes como conhecemos hoje. Num mundo pós-utópico a liberdade já não é um sonho possível. Aliás, os sonhos já não têm mais a menor importância. As portas se fecharam para os seres humanos. Aves cruzam os céus, peixes, os mares, indiferentes às nossas fronteiras. Nuvens, rios, ventos correm o planeta e nem imaginam que só nós somos rejeitados, ou recebidos com raiva pelos nossos iguais, quando precisamos sair de onde estamos. Somos infinitamente desumanos.

A foto de hoje é irmã gêmea daquela de Aylan, em Bodrum.

O poema abaixo foi escrito sob o impacto da morte do menino numa praia do Mediterrâneo, mas tem o mesmo DNA da nossa violência e indiferença, da postura excludente que os privilegiados têm em relação aos que mais necessitam de ajuda, da política para migrantes que vem jogando corpos nas margens dos países que deveriam, de forma minimamente humana, estar de braços abertos aos que sofrem.

O mundo deveria estar de luto.

Eu estou

RÉQUIEM PARA AYLAN

A sala enchendo de luz

Café fumando na xícara

Eu me encharcando de mundo

Da ressaca das notícias

Nuvens da primeira página

Chegaram escuras e tristes

Transportando tempestades

Eu me engasgando de pão

De margarina e de lágrimas

Tinha um garoto no chão

Na foto – que eu nem olhava –

Na praia – nas minhas mãos.

Tinha fugido de casa

Das armas, de um outro mundo

Abandonado o passado

E uma incerteza sem fundo

Por um presente sem planos

Pra se afogar sem futuro

No fundo do Mediterrâneo

Pra vir morrer noutra guerra

Depois de expulso da infância

Pra ser a grande manchete:

“Nós já não somos humanos”

Que espécie de espécie é essa

De monstros que nos tornamos?

Temos desprezo pros pobres

E cerca pros imigrantes

Eles que passem ao redor

Do ódio das nossas certezas

Cegas àqueles que sofrem

Aylan morreu nessa mesa

Entre as louças do café

E a tristeza que ele deixa

Não era ninguém, mas era

Todos os filhos do mundo

Cuspidos pela maré

Sobre as pedras de Bodrum

Sobre os destroços de nós

Náufragos dos tempos turvos

Em que hoje morremos sós

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