SOBRE “OBJETOS SÓLIDOS”.

Leoni Siqueira
8 min readFeb 20, 2020

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Será que passei sem sentir para o outro lado? O outro lado é uma vida latejantemente infernal. Clarice Lispector.

Senti uma alegria quase infantil lendo esse conto, afinal, para mim, é disso que ele trata: do maravilhamento do mundo através do olhar desestruturado e sem preconceitos, típico das crianças e dos artistas – apesar de a história não ser nem sobre uma criança nem sobre um artista. Aliás, a história é o que menos importa nesse conto: ela gira em torno de como a descoberta totalmente casual de um caco de vidro enterrado na areia da praia foi o estopim de uma epifania, uma revolução. O que seria considerado lixo pelo senso comum, simples rejeito inútil, vira jóia para o protagonista: “não era nada a não ser vidro; era quase uma pedra preciosa.” A esse olhar sem amarras acrescente-se a imaginação, e o caco de realidade pode se transformar em “algo exibido por uma princesa negra, sentada na popa de um barco, rasgando a água com o dedo, a ouvir escravos cantando” ou em esmeraldas de um tesouro elisabetano a bordo de um navio naufragado, que “em comparação com o vago mar e a esfumada praia” lhes é muito superior, por ser “um objeto tão duro, tão concentrado, tão definido.” É impressionante, mas não casual, a semelhança com a cena de Dom Quixote, em que o cavaleiro, no escuro, toma a serva de uma estalagem pela filha do dono de um castelo (Cervantes, 2016, p. 214): “Trazia no pulso umas contas de vidro, mas aos olhos dele deram vislumbres de preciosas pérolas ocidentais. Os cabelos, de certo jeito tirantes a crinas, ele os teve por madeixas do luzidíssimo ouro da Arábia, cujo brilho o do mesmo sol ofuscava[…]”. Essa súbita mudança de abordagem do real por parte de John, nosso personagem principal, é o evento disparador de uma transformação radical nas suas prioridades, com consequências gigantescas para sua vida.

Numa leitura superficial, muito resumidamente, o conto seria sobre um homem com pretensões políticas que, por desleixo – causado por uma estranha fixação em coletar objetos estranhos, inúteis, retirados do lixo –, acaba fracassando em seu plano e se tornando arredio ao convívio social, mas que, curiosamente, não parece se importar com seu destino profissionalmente medíocre. Quando escrevi o início desse parágrafo, minha intuição me dizia que essa seria uma leitura tão rasa que hoje não encontraria mais quem a validasse. Mas foi só eu jogar nas minhas redes sociais sobre o deslumbramento que senti lendo esse conto, que uma pessoa no Instagram comentou: “Acabei de ler. Tocante. Até que ponto uma obsessão pode nos afastar da vida.” Oi? Nossas incoerências, manias, decisões impulsivas ou “irracionais” não são parte da nossa vida? Não seria, em muitas ocasiões, a maior parte dela? Quase 100 anos depois desse conto ter sido lançado, a abordagem realista utilitária ainda está viva e, talvez, seja majoritária – já que não tive nenhum outro comentário, nem apareceu ninguém para se opor a essa análise. A abordagem banal, de cunho quase moralista, no entanto, não é o que, para mim, importa em “Objetos sólidos”. O precioso está nos cacos de pensamentos e de associações, no que é revelado além da aparência, quando se abandona o olhar convencional e desinteressante/desinteressado sobre a vida. A aventura descrita por Woolf está em atravessar a fronteira do mundo racional. para penetrar em uma região da vida onde as experiências não são mapeadas, não se apresentam a priori, mas na confusão do momento.

Comecemos pelo narrador, que partilha, desde o primeiro parágrafo, o olhar que o protagonista vai apresentar depois da descoberta do caco/jóia. Aliás, abrindo parênteses, quem é esse que vê John e Charles caminhando ao longe na praia, aproximando-se e revelando-se aos poucos? Se é um narrador onisciente, estaria “grudado” na dupla e não poderia descrever sua chegada. No máximo, essa aproximação seria descrita pela perspectiva de outro personagem. Mas não é o caso, já que não há outros personagens na praia. O começo magistral do conto é um desafio à abordagem estruturalista. Temos um narrador não confiável – aliás, sinceramente, algum narrador é realmente confiável? —, que tenta, com dificuldade, decifrar o que está acontecendo diante de seus olhos – “A única coisa que se movia no vasto semicírculo da praia era um borrão negro […] esse borrão possuía quatro pernas; e a cada instante ficava mais inequívoco que ele era composto das figuras de dois moços.”, ou ainda, “[..]era o que a bengala do lado direito, contígua às ondas parecia (grifo meu) estar afirmando[…]” –, que não se apresenta, mas que tem, claramente um corpo, que ocupa um lugar determinado no espaço. Esse narrador se oculta, a partir do terceiro parágrafo, como se não tivesse se exposto antes, como se contasse com a nossa desatenção. Como se, desde o início, fosse um caso típico de discurso indireto livre. Fechando os longos parênteses, o narrador também liberta a imaginação das amarras do real e brinca com as imagens. Um borrão de quatro pernas? Palavras não ouvidas, mas sugeridas pelo corpo do personagem? “‘Que se dane a política!’era o que brotava claramente do corpo do lado esquerdo.” Aliás, aqui está uma pista deixada pelo autor (narrador?): o corpo de John já repudiava a política, mesmo antes da epifania das coisas simples e sólidas provocada pelo pedaço de vidro verde que desenterrou da areia. Já havia nele a busca por outros valores. Era a razão, não seu desejo, que o impulsionava rumo a um cargo eletivo. Tanto isso é importante, que o narrador repete a frase logo antes do evento que provoca a transformação do protagonista: “[…] e John, que exclamara ‘Que se dane a política!’ (grifo meu porque não dá para não perceber que essa frase é uma oração adjetiva que qualifica John, e que o personagem não disse, mas perecia ter exclamado com o corpo), começou a escavar fundo […] À medida que a mão avançava […], seus olhos perdiam a intensidade, ou melhor, aquele interior feito de pensamento e experiência (grifo meu) que confere uma inescrutável profundidade aos olhos dos adultos desaparecia, restando apenas a superfície clara e transparente que nada exprime a não ser o maravilhamento (grifo meu) exibido nos olhos das crianças muito pequenas.” Fica muito clara a oposição entre. o campo semântico criado pelas palavras pensamento, experiência, profundidade e adulto de um lado e maravilhamento, transparência, superfície e criança do outro.

Logo após o achado, narrador e personagem se unem através do recurso do discurso indireto livre, já que o personagem agora compartilha da visão de mundo poética/infantil do narrador, como se esse espírito tivesse adentrado o corpo de John: “Ele lembrava que, após escavar um pouco, a água brotava em volta das pontas dos dedos; o buraco virava então um fosso; um poço; uma nascente; um canal secreto para o mar.” Com esse olhar infantil, recuperado das profundezas da areia, ele pode ver uma jóia num caco de vidro, apaixonar-se por sua solidez. Todo o mundo volta a ser encantado, misterioso, nenhuma generalização é aceita, nenhuma lógica pode se sobrepor à experiência, nenhuma transcendência conceitual pode barrar o movimento da vida. Quem pode provar que o coração da pedra não “pula de alegria ao se ver escolhida dentre milhões iguais a ela para desfrutar dessa benção em vez de uma vida de frio e umidade.”? Quem pode garantir que ela não pensou: “Muito facilmente podia ter sido qualquer outra dos milhões de pedras, mas fui eu, eu, eu!”?

A princípio, John ainda tenta integrar essa nova visão de mundo à sua realidade cotidiana. O caco de vidro ganha destaque no console da lareira, mas tem também uma função prática de peso de papéis para o que é mais corriqueiro na vida: contas a pagar. A transformação se acentua no dia em que nosso protagonista perde uma reunião com seus eleitores para capturar uma porcelana quebrada em forma de estrela do mar que lhe deu muito trabalho e lhe tomou muito tempo. Os cacos, as estrelas, o inútil se sobrepõem às obrigações cotidianas. Extraordinária é a descrição desse momento, que mostra claramente a preferência de John pelo assombro e a desimportância que dá à sua transgressão: “Ao pegá-lo, deu um grito de triunfo. Naquele instante o relógio soou. Não havia como manter o compromisso. A reunião aconteceu sem ele. Mas como o pedaço de porcelana tinha se partido para vir a adquirir essa notável forma?” Três orações curtas sem uma menção a qualquer arrependimento ou culpa e estamos de volta ao mergulho no maravilhamento. “[…] parecia uma criatura do outro mundo – esquisito e fantástico como um arlequim. Parecia dar piruetas pelo espaço, tremeluzindo feito estrela intermitente.”

John passa a se dedicar a esse garimpo de cacos de porcelana, levando os mais refinados para casa, mesmo que já não tenham mais nenhuma utilidade prática, “pois os papéis que precisavam de peso para mantê-los no lugar se tornavam cada vez mais raros.”

Como consequência, não consegue se eleger. Mas essa derrota não parece incomodá-lo, pois no mesmo dia se encanta com a descoberta de “um pedaço de ferro extraordinariamente notável” e “tão frio e pesado, tão negro e metálico, que era, evidentemente (grifo meu) alienígena à terra”. “O meteorito permaneceu no mesmo console, com o pedaço de vidro e a porcelana em forma de estrela.” É notável como os objetos vão deixando de representar algo maior para se transformarem eles mesmos no maravilhoso. O vidro lembrava uma jóia, a porcelana tinha forma de estrela e o ferro era um meteorito. Seu pensamento foi se afastando da fronteira delimitada pela racionalidade do início do século XX, de seu cientificismo, de seu utilitarismo. O diálogo com as pessoas convencionais se tornou impossível. Ser político passava a ser uma incoerência. Como ser representante das pessoas que lhe são tão opostas? Dom Quixote também não poderia ser o representante da gente de sua época. A vida prática, segundo regras convencionais, com sentidos previamente delimitados para todas as coisas no mundo das ideias e conceitos, nada disso cabe mais na realidade mágica de partir do que é sólido, do que é presente, de mergulhar na experiência.

Resumindo, não há resumo. O conteúdo não dá conta da forma, cujas digressões e associações não são acessórias, mas o próprio objeto do texto. Não há como resumir a leitura de Virginia Woolf à narrativa objetiva dos fatos. Esse conto não é sobre algo que se possa amarrar, a ponto de nos dar um resultado conclusivo que consigamos reconhecer como estória em seu sentido mais comum. Talvez nos seja útil trazer as palavras da própria autora sobre os inconclusivos contos de Tchekhov, que ela analisa em “The Russian Point of View”, ensaio de seu livro The Common Reader de 1925, pois parecem falar também de sua atitude frente a seus próprios textos: “À medida que lemos essas pequenas histórias sobre nada, o horizonte se alarga; a alma ganha um surpreendente senso de liberdade.”

PS: li esse conto hoje de novo, pela terceira ou quarta vez. Como gosto de reler coisas boas. Foi essa releitura que me lembrou desse texto que compartilhei aqui agora.

PS2: Virginia Woolf é um assombro!

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